terça-feira, 8 de novembro de 2016

João XXIII





                                            Havia um olhar sombrio, que visitava meus recantos a todo o momento. Parecia estar espreitando, aguardando o momento ideal para me levar consigo. Não me abatia, não me desesperava. Via o medo, mas, não o sentia dentro de mim. Poderia acariciar-lhe a face sem que ele me levasse ao pânico ou, no mínimo, receio.

“Saí atropelando todo mundo. Os caras queriam me pegar. Corri pela avenida, atravessei de um lado para o outro em zig zag, tentando me desvencilhar de suas mãos, e a cada aproximação um soco que me infligiam. Passei diante de um automóvel que teve que frear se não me atropelava. Corri por trás de um ônibus que estava estacionado e atropelei uma senhora que estava parada aguardando com algumas sacolas. Neste momento caí e torci meu tornozelo. Mesmo assim, levantei rapidamente e corri para dentro de uma estação rodoviária ali perto. Já fatigado, fui me esconder dentro do banheiro da rodoviária. Parecia seguro ficar ali. Parecia! Só ouvi o estrondo, deram um chute na porta, arrebentando o trinco. Eram meus algozes, três ao todo. Um carregava uma faca, enquanto os outros cerravam os punhos, enfurecidos, com intuito de massacrar!”

Os sentidos, após uma cirurgia, retomam de maneira lenta e gradativa. Primeiro, como fosse um sussurro, um som distante e quase inaudível, mas que aos poucos vai avolumando. O mesmo acontece com a visão. Lentamente as cores vão ficando mais vivas e o brilho vai lhe afastando, aos poucos, do breu que lhe acomete. Acordei naquela manhã deitado num leito de hospital, com aparelhos ligados a mim por sensores grudados por todo meu corpo. No dedo anelar da mão direita, um grampo, aparentemente media meus dados vitais. Observei, introduzido no meu corpo, entre o quadril e a ultima costela, do lado esquerdo, uma sonda, que sugava um líquido para uma bolsa pendurada no beiral da cama. Comecei a sentir uma ardência muito forte na virilha. Levantei o lençol e pude perceber; introduzida pelo canal de meu pênis, mais uma sonda. Esta, drenava sangue, como pude perceber, para outra bolsa, ainda maior, pendurada do lado inferior à direita do leito. Senti-me a nova criação de Victor Frankenstein. A enfermaria estava extremamente movimentada. Enfermeiros transitavam de um lado para o outro, conversavam, riam, gesticulavam uns aos outros. Médicos examinavam pacientes acamados. Alguns destes pacientes estavam desacordados. Tentei chamar uma enfermeira, mas, a voz não saia. Levantei o braço e ela veio ao meu encontro.
_Está bem? - perguntou.
_Sim, mas gostaria de saber as horas.
_Três horas!
_Da tarde?
_Não, da madrugada!
Não acreditava! Tudo estava tão frenético e a luzes acesas não permitiram que eu percebesse. A senhora, de meia idade, avental branquíssimo, óculos baixo, me observava por cima da armação, retirou do meu dedo o grampo que media meus batimentos ou algo parecido. Trocou-o para o dedo médio. Fez uma pequena massagem no meu dedo anelar, onde o aparelho estava fixado, me contando uma história:
_Houve, recentemente, um caso. Um paciente perdeu parte do dedo devido à gangrena. As enfermeiras que cuidavam deste paciente, que estava em coma, esqueceram-se de trocar o aparelho de dedo. Logo após despertar, houve a necessidade de amputar parte do indicador do rapaz. Por isso, sugiro a você; não aguarde que façamos isto. Você está acordado, troque de dez em dez minutos o medidor, de um dedo para o outro.
Assustei com o tom de ameaça proferido por aquela profissional. Preferia estar sendo cuidado por outra pessoa. Não me senti confortável, não pelas palavras, mas, com tom agressivo.
As horas naquele recinto custavam a passar. Restava a mim observar a movimentação. Com o passar do tempo, passei a sentir dores fortes no abdome. Até aquele momento não havia percebido. Entretanto, munido de curiosidade, devido aquela dor forte que sentia, levantei o colarinho da roupa que vestia e vi a operação. Desde a parte superior do abdome até a virilha. O rasgo emendado por linhas cirúrgicas descia pouco abaixo do peitoral, contornava o umbigo até chegar bem próximo a virilha. Meus olhos, neste momento inundaram. Minha percepção dos fatos me alertavam que ficaria ali por mais tempo que havia imaginado. Calculava uns três dias para poder conseguir alta e voltar para terminar de me recuperar em casa. Era terrível. Chamei uma das enfermeiras, relatei as dores. Ela trouxe um comprimido que tomei com bastante dificuldade. Continuei ali, observando o movimento. Acalentado pela sorte que aparentemente tive em ainda estar vivo.
Do meu lado direito, em coma, era o que se notava, no leito, um senhor de idade. Uns 50 ou 60 anos. Pude perceber, pela conversa das moças que cuidavam dele, que ele havia chegado ao pronto socorro após ter sido espancado em uma festa numa cidade do interior. A cidade era Oliveira. Alertei naquele momento, pois, esta era minha cidade natal, onde morava alguns de meus irmãos e parentes. Fiquei atento, tomei coragem e pedi mais detalhes a elas, explicando que eu era de lá. O fato era que, durante uma festa no parque de exposições da cidade, este senhor havia se envolvido em uma briga com valentões que estavam utilizando drogas próximo à vítima, que foi tirar satisfação e acabou sendo espancado. Disseram às enfermeiras que até uma mulher havia participado da sessão de espancamento. A situação era gravíssima, não tinha muita esperança que ele fosse se safar. Este senhor já estava no hospital havia algumas semanas e nenhuma melhora fora percebida desde sua chegada.
À minha esquerda tinha uma menina, acompanhada pela mãe. Tinha uns 10 ou 11 anos. A cuidadora que lhe atendia dizia, com satisfação, que, apesar da gravidade da lesão, ela não havia perdido o rim. Isto aconchegava a mãe da menininha. Neste momento, vendo que eu observava, a enfermeira se dirigiu a mim dizendo; _Diferente de você, rapaz! Você perdeu um rim.
As visitas aquela enfermaria estavam previstas para as 14 horas. Era por volta de meio dia e alguém havia me alertado que estavam no saguão algumas pessoas esperando para poder me ver. Em breve raciocínio pensei: Meus pais, alguns de meus irmãos, minha namorada. Fiquei feliz com a notícia. Já não via a hora de vê-los. O tempo se arrastava mais lentamente ainda. Chegada à hora, observei meus pais adentrando a enfermaria. Traziam no olhar a emoção, medo e angústia. Aproximaram. Minha mãe tratou de me abraçar, prostrando sob o leito. Meu pai agarrou minha mão e perguntou, ainda sem saber ao certo o que dizer: _O que houve Vitinho? Disseram que você levou uma paulada. Sorri e gesticulei negativamente coma cabeça. Depois expliquei.
_Foi um assalto pai, me deram uma facada nas costas. Mas, estou bem. _Disseram quanto tempo ficará aqui?
_Não. O médico disse que não tem previsão. O nome dele é Daniel.
_Vamos perguntar a ele.
Enquanto isso minha mãe queria apenas me trazer ao colo. Impossível naquele estado que me encontrava. Suas lágrimas caiam em meu rosto, suas mãos acariciavam meus cabelos suavemente.
_Fique tranqüila mãe. Estou bem. Está tudo bem.
_A enfermeira disse que você perdeu um rim, é verdade? Perguntou-me meu pai.
_Não senhor! Ela está enganada. Perguntei ao médico, Daniel, ele disse que tive uma lesão grau 4 no rim, numa medida que vai de 1 a 5. Entretanto, não perdi o rim com ela está dizendo.
_Que boa notícia filho; completou minha mãe.
_Prefiro acreditar nele, afinal, ele me operou.
Passados alguns minutos vieram me ver meus irmãos. Depois uma amiga, posteriormente minha namorada, que havia me acompanhado ao hospital depois do foto ocorrido. Senti-me renovado e quase pronto para voltar para casa. Apesar de tudo, foi uma grande satisfação saber que não estava só.
Como já havia mencionado, as horas naquele local passavam como uma lesma buscando a umidade, fugindo do calor do sol. Seria com muita paciência que aguentaria aqueles dias até meu retorno ao meu lar.

“Estava caminhando pela calçada. Sou um cara temente a Deus, não faço nada de errado. Levei quatro tiros de balas perdidas. Muito azar mesmo foi quando cheguei ao hospital. Parecia uma peneira. Vazava sangue pra tudo quanto é lado. Igual o chafariz da praça central. Daí o Doutor mandou eu deitar de lado. Senti o dedo dele lá no meu ânus. Foi terrível, gritei pra ele: _Doutor, tu não me chama para almoçar nem tomar um café e já está com o dedo aí dentro, porra! Levar uma bala no ânus não é pra qualquer um não! Os profissionais da saúde é que aproveitam, tacam o dedo mesmo, não estão nem aí. Nos meus olhos nunca desceram tanta lágrima. Mais um pouco e tinha pedido o Doutor em casamento!”

Uma semana antes de ir parar no João XXIII ouvi uma notícia no rádio que me chamou a atenção. Após uma briga na fila do INSS, um rapaz fora atingido por golpe de faca, na barriga. Disse o repórter que a briga foi em virtude de uma disputa entre guardadores de lugar; pessoas que vendiam lugar na fila do INSS. Costumava ir naquela agência, a trabalho, protocolar alguns documentos e fazer solicitações. Lembrei que o rapaz havia sido encaminhado ao João XXIII, onde me encontrava naquele momento. Engraçado como é a vida. No mínimo interessante.
A noite aproximava-se, e o movimento daquela enfermaria não parava. Estava no horário de troca de turno. Alguns enfermeiros tiveram que permanecer aos seus postos pois, em virtude de uma greve da classe, alguns trabalhadores haveriam de se atrasar, se viessem, aliás. Eles reivindicavam reajuste salarial e alguns benefícios. Beirando as 20 hs um susto. Adentraram o quarto vários enfermeiros e uma médica. Todos empurrando uma maca com um paciente desacordado sobre ela. Pararam e deram início as tentativas de restabelecimento da vida do moribundo. Começaram pelo desfibrilador, deram vários choques em um intervalo de poucos minutos. Insatisfeito com o resultado, um dos socorristas subiu na maca, apoiando os pés nas extremidades do leito, ajoelhou-se com o paciente entre os joelhos, começou a pressionar com violência as palmas das mãos sobre o peito do doente. Foram minutos ininterruptos de tentativas, mas sem sucesso. Já não havia mais nada o que poderiam fazer para reanimar aquela pessoa.
A morte é o único destino inevitável, trás consigo a dor da perda, mas ensinamentos para a vida. Será preciso morrer para reconhecer o valor da vida? E se não morrêssemos? E se fôssemos eternos? De certo, caso esta fosse nossa realidade, viveríamos em um mundo repleto de cientistas loucos tentando desvendar uma maneira de ceifar a vida, possibilitando ao ser um descanso eterno sem vibrações e turbulências. Mas, por sorte, fomos agraciados com a morte, assim, a vida segue com algum sentido.
O hospital, sobre o leito, nos dá tempo de dissertar sobre as nuances da vida. Se apreciar este tempo refletindo sobre sentido de tudo, com toda certeza, sairá dali uma pessoa mais sábia. Nestes três primeiros dias de internamento, deitado naquele leito de hospital pude perceber muita coisa que até então estava camuflada dentro de mim. Percebi, por exemplo, a mediocridade de meu jeito de ser. Era um cara extremamente tímido. Perdi N oportunidades de mudar meu destino devido a minha timidez e meu receio de tudo e todos. Posso dizer que a experiência vivenciada foi o trampolim para uma nova vida. Mas, por enquanto, esta história ainda não terminou. Não se trata, este parágrafo, do fim deste conto...